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Estamos formando instrutores de NR 35 como se formássemos pilotos de avião com algumas poucas horas num simulador de voo.

Luiz Eduardo Spinelli6 de abr. de 2022

Imagine voar em um avião comercial como passageiro sabendo que a capacitação do piloto que conduzirá a aeronave se restringe a poucas horas de instrução em um simulador de voo

Estamos formando instrutores de NR 35 como se formássemos pilotos de avião com algumas poucas horas num simulador de voo.

Imagine voar em um avião comercial como passageiro sabendo que a capacitação do piloto que conduzirá a aeronave se restringe a poucas horas de instrução em um simulador de voo. Esta metáfora reflete o que estamos fazendo com relação aos instrutores de cursos obrigatórios por lei. Com a publicação das últimas normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, e em especial a NR 35, as empresas se viram obrigadas a treinar um grande número de trabalhadores. Com a intenção de reduzir custos, muitos empregadores resolveram capacitar instrutores internos para não precisar contratar professores externos. Surgiu então uma nova demanda, e em função dela algumas instituições lançaram no mercado cursos de formação de multiplicadores (instrutores). Podemos definir o multiplicador como o aluno que se torna professor. Trata-se de uma prática bastante empregada no mundo corporativo, e muito útil na disseminação do conhecimento dentro das empresas. Imaginemos que na implantação de um novo sistema tecnológico a administração de uma empresa selecione um dos seus colaboradores para ser treinado no país de origem dessa nova tecnologia. Ele aprenderá sobre o novo sistema e ao retornar para a empresa terá o compromisso de compartilhar o que aprendeu com os seus colegas de trabalho. É o aluno que se torna professor. Embora seja um bom método na gestão do conhecimento, temos que nos perguntar se ele se aplica aos cursos obrigatórios por lei e em especial para as atividades de risco elevado como é o trabalho em altura. E a resposta é não! Estamos tentando formar pilotos de avião com algumas poucas horas em um simulador de voo! É uma realidade no mercado de trabalho que para as empresas o custo de tirar o empregado da função pode ser maior e muito mais difícil do que arcar com os custos do treinamento. Então, para oferecer um produto viável ao mercado, os cursos de multiplicadores oferecidos atualmente têm se limitado a no máximo 48 horas de carga horária. Não é preciso muita reflexão ou experiência profissional para compreender que é impossível formar um professor, seja do tema que for, em apenas 48 horas. Mas o problema se agrava com muitas ofertas de cursos de multiplicadores de 24 horas, e até mesmo de 20 horas. Sim, 20 horas com a proposta de formar um profissional que treinará trabalhadores para tarefas em altura com risco de queda! 

Obviamente que qualquer que seja o tempo disponível para um tema, entre uma palestra de 1 hora ou um curso de 48 horas de duração, quando bem planejado e apresentado de forma didática, poderá compartilhar conhecimento e oferecer algum grau de instrução, mas acreditar que fará de alguém um “professor” do tema é no mínimo uma ideia ingênua. Tão pouco tempo investido pode ser válido se for dirigido ao aperfeiçoamento de profissionais já capacitados, ou seja, um público pré-qualificado que chegue em sala de aula com uma boa “bagagem” de conhecimento e experiência acumulada sobre o tema. Mas não é isso que de fato tem acontecido. Embora algumas instituições divulguem os cursos de multiplicadores como um treinamento dirigido aos profissionais de segurança do trabalho e bombeiros civis, a formação básica desses profissionais não garante a expertise sobre o tema. Um técnico ou engenheiro de segurança recém formado conhece o assunto muito superficialmente. Existem escolas de bombeiros civis que se limitam a instruir os alunos com técnicas pertinentes apenas para a profissão e que não podem ser utilizadas por trabalhadores. Portanto, se o público é inexperiente, o treinamento será certamente inócuo, ou pior, pode ser prejudicial, pois cria a ilusão de que o profissional está apto a treinar outras pessoas quando na verdade não está. Este artigo tem o objetivo de estimular a reflexão sobre o problema e instigar uma discussão sobre futuras ações que o corrijam. Entre as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, podemos destacar a NR 18, a NR 33, a NR 34 e a NR 35, por considerarem o risco de queda do trabalhador. E em todas elas a exigência para que o curso de qualificação seja considerado válido é que o instrutor possa comprovar proficiência. Sobre a NR 35 especificamente, não é abordada a formação técnica exigida para o instrutor mas acrescenta que o curso deverá acontecer sob a responsabilidade de profissional qualificado em segurança no trabalho. Não existem nas normas regulamentadoras critérios específicos para definir o que é um instrutor proficiente. Não há referências sobre experiência, formação técnica e profissional. E é isto que abre espaço para os maus exemplos do mercado.

O que é proficiência?

A palavra proficiência é definida pelos dicionários como um adjetivo, ou seja, uma qualidade atribuída a alguém, e é a característica de proficiente, que por sua vez é definido como alguém capaz, hábil, conhecedor de um assunto, etc. Pelos dicionários os sinônimos de proficiência são competência, conhecimento, habilidade, destreza, maestria, entre outros. Portanto, os dicionários pouco ajudam a elucidar a questão. Considerando o artigo de Busnardi e Fernandes (2010), que trata da proficiência de professores de língua estrangeira, um profissional com proficiência para ministrar aulas deve ter a competência comunicativa, que significa saber conduzir uma conversa, saber selecionar o conteúdo de um discurso e saber adaptá-lo a diferentes públicos. Soma-se a competência comunicativa a competência profissional, que é a soma do conhecimento teórico e prático, das crenças, das intuições e dos sentimentos que acompanham a pessoa na sua trajetória profissional. Tais competências só podem ser adquiridas com o estudo e a vivência em determinado ramo de atuação.

A atual capacitação de docentes.

No Brasil temos a falta de bons professores como um problema crônico, seja na educação básica, nos cursos de nível superior ou nos cursos profissionalizantes. A imprensa aborda este problema frequentemente e a solução parece distante. Escolas de ponta ou instituições renomadas de ensino profissionalizante enfrentam o problema de conseguir bons professores mesmo com a oferta de bons salários. É evidente que a origem está no processo de capacitação e aperfeiçoamento do docente, e isso quando tal processo existe, pois a exemplo do ambiente universitário, para ser professor basta ter uma pós-graduação, sem necessariamente ter no currículo qualquer formação complementar para o ensino. Quando nos voltamos para o objeto deste artigo, o problema muito se agrava, e por vários aspectos. E o mais relevante é que não estamos tratando de professores que formarão maus contadores, maus advogados ou maus bibliotecários, mas da formação de trabalhadores que serão expostos a atividades de risco e que a imperícia (falta de conhecimento técnico e prática) e a imprudência (falta de consciência prevencionista) podem leva-lo ao acidente e consequente morte! 

E qual é a formação dos instrutores que capacitam trabalhadores para atividades laborais de risco? As normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego que se mostram mais exigentes determinam que o profissional seja legalmente habilitado, o que significa estar previamente qualificado e com registro no competente conselho de classe. Soma-se a isso a exigência frequente do instrutor comprovar proficiência no assunto, e como já foi abordado, é muito vago, criando um “vácuo” que os oportunistas aproveitam para criar padrões medíocres. Para a redação deste artigo foi realizada uma breve pesquisa para identificar padrões de capacitação de docentes no Brasil que pudessem ser apresentados como bons exemplos, mas o resultado foi frustrante! Com base em normas europeias, criamos no Brasil o padrão profissional para a atividade de acesso por cordas, regido pelas normas da ABNT e consolidado pelo anexo 1 da NR 35. Para que um profissional torne-se instrutor de acesso por cordas ele deve ser certificado no nível 3, o que significa que ele comprovou um mínimo de 36 meses de experiência na profissão e no mínimo 120 horas de treinamento ao longo da sua carreira. Ou seja, somente alguém com experiência e conhecimento técnico comprovados poderá assumir a função de instrutor. Mas até mesmo esse bom exemplo tem a sua falha, que é falta de preparação para que o profissional de acesso por cordas nível 3 assuma o papel de docente. Pois sem uma preparação específica, tal profissional poderá contar apenas com a sua vivência em sala de aula como aluno. E mesmo que tenha tido a oportunidade de ser instruído por bons professores, e os tenha como bons exemplos a serem seguidos, será despreparado para as etapas de planejamento e organização de aulas, dais quais não teve a oportunidade de acompanhar ou ser instruído. Considerando a definição de proficiência de Busnardi e Fernandes (2010), o padrão de acesso por cordas garante no processo de qualificação a competência profissional do indivíduo, mas não garante a competência comunicativa. 

A evolução necessária.

Considerando a importância do tema, inevitavelmente teremos que abordar o problema, e de fato ele já começa a ser discutido nos círculos profissionais, devendo a isso os abusos que vem sendo cometidos no mercado. O que devemos buscar com essa discussão é criar um padrão adequado de capacitação para os instrutores de NR 35 e demais temas que envolvem atividades de risco. Devemos definir os critérios de avaliação para a comprovação da proficiência de um instrutor. Devemos também definir, dentro desse âmbito, a diferenciação entre o papel de multiplicador e de instrutor. Explicando melhor, o papel do multiplicador é importantíssimo como ferramenta para a disseminação do conhecimento, mas é e deve ser limitado. É benéfico pensar que a instrução para um determinado equipamento possa ser oferecida para alguns poucos colaboradores que ficarão com a incumbência de repassar esse conhecimento específico para os colegas, no entanto, jamais deverão substituir um profissional que deve possuir a proficiência necessária para atuar como professor. Considerando a realidade do mercado, deve-se reconhecer que dificilmente conseguiremos a aceitação de padrões muito rigorosos e ideais muito elevados. Como sempre, o que se tornar regra, provavelmente será o “mínimo” necessário. Mas não podemos abrir mão da normatização deste tema, pois envolve a segurança e a saúde de trabalhadores. Como não se forma um instrutor de tema algum da noite para o dia, a capacitação do docente deve ser um processo que pode ser iniciado com a exigência de uma pré-qualificação, como experiência e formação técnica mínima, para então submetê-lo a formação específica de docente. Além da formação técnica e da experiência profissional, é fundamental que a formação do instrutor contemple a “arte de ensinar”. Que sejam garantidas as competências necessárias para uma performance de qualidade como professor, mesmo que as metas se mantenham no mínimo desejado. Mesmo que demande anos para a solução do problema, o tema tem que ser discutido imediatamente e os profissionais, as empresas e as instituições de ensino precisam começar a se mobilizar para melhorar o padrão de qualidade antes que tenham que fazê-lo por exigência legal.

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